Picture of Hélio Liborio
Hélio Liborio

Pitaco

Vozes em Ação e o Silêncio Persistente no Cânone

Português

A antologia “Mulheres Negras: vozes, olhares e mãos”, idealizada por Delma Pereira, emerge como um farol na paisagem literária, iluminando a urgência de se dar voz a quem historicamente foi silenciado. O fato de estarmos na 1ª edição de um projeto como esse é, ao mesmo tempo, motivo de celebração e de reflexão crítica. Celebramos a resiliência e a persistência dessas vozes, mas também nos questionamos: por que iniciativas como essa ainda são exceção e não a regra no mercado editorial e nas instituições de fomento à cultura? A ausência de representatividade continua a ser um sintoma de um cânone literário que teima em se manter monocromático e excludente.
A “escrita autoral, peculiar” das 64 autoras, que aborda “seus corpos, seus cabelos, seus rostos, seus olhares, suas vozes, suas profissões”, é um ato de subversão. É um movimento deliberado para tomar o controle da própria narrativa, desafiando os estereótipos e as representações distorcidas que historicamente foram impostas à mulher negra. Contudo, essa autonomia da narrativa, tão vital para a dignidade e o empoderamento, não deveria depender exclusivamente do esforço e da paixão de idealizadoras como Delma Pereira. A responsabilidade de promover a diversidade e a inclusão recai sobre todo o ecossistema literário – editoras, universidades, críticos, e políticas públicas.
A referência a Tereza de Benguela e à “grita muito forte sem precisar se esconder” é um poderoso chamado à ação. No entanto, é preciso ir além da celebração pontual e da coragem individual. O desafio é transformar essa “grita” em mudança estrutural. Enquanto a literatura de mulheres negras depender majoritariamente de projetos independentes e da “primeira triagem” a preços acessíveis para chegar ao público, o sistema de exclusão persiste. O verdadeiro avanço será quando essas vozes ocuparem naturalmente as estantes das grandes editoras, os currículos acadêmicos e as listas de mais vendidos, sem que sua presença seja vista como um ato de exceção, mas como a norma.
________________________________________
A Exclusão Histórica e a Necessidade de Espaços Permanentemente Abertos
A reincidência da antologia “Mulheres Negras: vozes, olhares e mãos” em sua terceira edição é um atestado da histórica exclusão da mulher negra dos espaços de produção e reconhecimento literário. A simples existência desse projeto em si já é um alerta para a persistência de barreiras invisíveis, mas palpáveis, que impedem a ascensão e a visibilidade de autoras negras em pé de igualdade com seus pares. A narrativa de que a história “distanciou a mulher negra a não produzir, conquistar, ser e ocupar espaços” não é um lamento do passado, mas uma crítica contundente ao presente, onde o privilégio e o racismo estrutural ainda operam silenciosamente para manter determinadas vozes à margem.
A necessidade de projetos como este, que promovem a autoria 100% feminina negra, reflete a insuficiência das políticas existentes e a lentidão do mercado em absorver e valorizar essa produção de forma orgânica. Não basta aplaudir a iniciativa; é preciso questionar as raízes dessa exclusão e exigir que as grandes casas editoriais, as academias e os programas de incentivo à leitura implementem ações afirmativas e contínuas para a inclusão dessas vozes. A antologia, embora poderosa em seu impacto imediato, não deveria ser o único ou principal caminho para que mulheres negras tivessem suas obras publicadas e reconhecidas.
O verdadeiro desafio é desmantelar as estruturas que tornam essas obras “exceções” e transformá-las em parte integrante do fluxo literário. É preciso que a presença de “diversidade de talentos e produções da própria raça” não seja um ato de bravura, mas uma consequência natural de um sistema justo e equitativo. A crítica, portanto, não se dirige à obra, mas ao contexto que a torna tão necessária. Enquanto houver um “espaço que a história distanciou a mulher negra a não produzir”, a luta por esses “devidos lugares” na literatura continuará sendo uma jornada árdua e constante.
________________________________________
A Narrativa da Resiliência: Para Além da Dor, a Força e a Reivindicação
A ênfase nas “marcas das suas resiliências” nas narrativas da antologia “Mulheres Negras: vozes, olhares e mãos” é um ponto crucial, mas que também convida à reflexão crítica. Embora a resiliência seja uma virtude inegável diante das adversidades impostas pelo racismo e pelo machismo, é importante que a literatura de mulheres negras não seja confinada apenas ao tema da dor superada ou da capacidade de suportar. A autenticidade da “escrita autoral, peculiar de suas histórias, vidas” deve também abranger a alegria, a complexidade das emoções, a pluralidade de suas experiências sem a necessidade de que estas estejam sempre atreladas ao sofrimento ou à reação a ele.
A representação dos “seus corpos, seus cabelos, seus rostos, seus olhares, suas vozes, suas profissões” como “perspectivas antológicas como ferramenta potencializadora em escritas” é, sem dúvida, um ato revolucionário. Permite que a mulher negra se veja e seja vista em sua totalidade, com sua beleza, sua inteligência e sua capacidade de atuação em diversas esferas da sociedade. No entanto, é fundamental que a potência dessas escritas transcenda a mera celebração da identidade e se aprofunde em questões de estrutura social, política e econômica que continuam a impactar suas vidas, oferecendo análises e propostas para um futuro mais justo.
A obra, ao se apresentar como “mulheres protagonista de se mesmo e agora de todos”, sinaliza um desejo de universalização de suas experiências. É vital que essa universalização não implique uma diluição da especificidade racial e de gênero, mas sim uma ampliação da compreensão sobre a riqueza da vivência negra. A resiliência, nesse contexto, deve ser entendida não como uma aceitação passiva da dor, mas como uma força ativa para a transformação, para a reivindicação de direitos e para a construção de um futuro onde a “grita muito forte” se transforme em um coro de vozes reconhecidas e respeitadas por sua própria valia e não apenas por sua capacidade de superar.

English