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Hélio Liborio

Política armada: a inquietante travessia da PM no campo da disputa eleitoral

Em entrevista à Rádio Sociedade, coronel Sturaro expressa preocupação com a crescente politização da Polícia Militar da Bahia.

Em tempos em que os limites entre instituições e ideologias parecem cada vez mais turvos, a declaração do coronel Sturaro, concedida ao jornalista Adelson Carvalho, da Rádio Sociedade da Bahia, nesta quarta-feira (16), acendeu um sinal de alerta. A fala do oficial da reserva, com quase cinco anos fora da ativa, foi clara e direta: “Total. Isso nos deixa muito preocupados”, respondeu ao ser questionado sobre o envolvimento político da Polícia Militar nos últimos anos. A contundência do diagnóstico revela um mal que corrói silenciosamente as bases da democracia: a politização das forças de segurança.


A voz da experiência: alerta de quem conhece os bastidores

O coronel Humberto Sturaro, figura de referência nos quadros da segurança pública baiana, traz em sua bagagem décadas de experiência em comando e articulação dentro da corporação. Sua posição na reserva, longe de esvaziar sua voz, confere-lhe liberdade para dizer o que muitos, ainda na ativa, sussurram pelos corredores. Quando afirma que a PM tem trilhado um “suposto caminho político”, a palavra “suposto” não camufla a gravidade do diagnóstico — apenas revela o cuidado jurídico ao tratar de uma ferida institucional.

Esse alerta não é novo, mas ganha peso quando vem de um nome que, outrora, foi a face pública de operações relevantes na Bahia. Sturaro, que participou ativamente de ações de inteligência e enfrentamento ao crime organizado, entende a necessidade de separação entre as funções do Estado e os interesses de partidos. Misturar essas esferas, segundo ele, compromete a neutralidade que deveria nortear a atuação policial.

A preocupação manifestada não é fruto de achismo, tampouco de especulações eleitorais. É um posicionamento baseado em observações do comportamento institucional recente da PM, que, em diversos episódios, pareceu mais alinhada a interesses políticos do que ao bem comum. O uso simbólico da farda, a presença de agentes em eventos com viés político-partidário e os discursos ideológicos proliferados em redes sociais são sinais de que a corporação atravessa um perigoso processo de deformação de identidade.


Segurança pública ou palanque armado?

A linha entre garantir a ordem e transformar a autoridade policial em agente político é tênue — e vem sendo ultrapassada com frequência alarmante. O risco é claro: uma Polícia Militar que se deixa instrumentalizar por grupos de poder abre mão de sua legitimidade perante a população e fragiliza as instituições democráticas. O uso da força, que deveria ser técnico e fundamentado no interesse coletivo, torna-se seletivo, parcial e, pior, ideológico.

Sturaro aponta para um fenômeno nacional, mas que tem suas particularidades na Bahia. Nos últimos anos, manifestações de policiais em redes sociais — muitas vezes uniformizados ou ostentando símbolos oficiais — revelaram alinhamentos explícitos com correntes ideológicas específicas. Esse comportamento fere não apenas os códigos internos da corporação, mas também os pilares do Estado de Direito.

A questão torna-se ainda mais sensível quando consideramos o papel da PM em contextos eleitorais. Há precedentes preocupantes de envolvimento direto de militares em campanhas, inclusive com denúncias de coerção, assédio político e utilização da máquina pública para fins eleitorais. A fala de Sturaro, nesse sentido, funciona como um pedido de socorro: é preciso reestabelecer os limites entre o dever constitucional da Polícia Militar e o apetite de quem busca o poder a qualquer custo.


O silêncio institucional e os reflexos na sociedade

Enquanto vozes como a de Sturaro se erguem, o silêncio das instâncias superiores do Estado é ensurdecedor. A politização da PM não é apenas um tema interno à corporação, mas um problema estrutural que envolve os Três Poderes, o Ministério Público, a Defensoria Pública e, sobretudo, a sociedade civil organizada.

O efeito desse processo é perverso. De um lado, cresce a desconfiança da população em relação à neutralidade da polícia; de outro, alimenta-se a ilusão de que o “braço armado” do Estado pode ser um instrumento legítimo de disputa política. O resultado é o enfraquecimento do pacto democrático, com aumento da tensão social e descrédito nas instituições.

É nesse ponto que a crítica de Sturaro ganha contornos de urgência. Não se trata apenas de uma análise técnica ou de um desabafo nostálgico de quem deixou a ativa. É, acima de tudo, um aviso de que a fronteira entre segurança pública e autoritarismo pode se dissolver, caso o país não recupere os freios institucionais que impedem que o uso da força se torne ferramenta de dominação ideológica.


O papel da mídia e da sociedade no enfrentamento do problema

A entrevista de Sturaro também revela o papel crucial da imprensa na mediação entre o que é dito nos bastidores e o que chega à opinião pública. O jornalismo que se propõe a escutar, interpelar e questionar agentes do Estado exerce um serviço fundamental à democracia, especialmente quando amplifica vozes dissonantes.

Entretanto, esse papel precisa ser ampliado para a sociedade civil. Entidades de direitos humanos, sindicatos, universidades e movimentos sociais têm o dever histórico de levantar esse debate e exigir transparência das corporações. É inadmissível que, em pleno século XXI, a sociedade conviva com o espectro de uma polícia que abandona seu caráter de Estado para se tornar milícia política disfarçada de força legal.

E é nesse momento que o alerta do coronel deixa de ser apenas institucional para se tornar existencial: que tipo de nação queremos construir? Uma nação onde a polícia serve à lei e ao povo ou uma em que ela se ajoelha a projetos de poder que se valem da violência para se perpetuar?


A necessária desmilitarização do debate político

A fala do coronel Sturaro reaquece um tema que já deveria estar no centro do debate público: a desmilitarização das polícias. Mais do que uma proposta técnica, trata-se de uma exigência democrática. A estrutura hierárquica, rígida e opaca das polícias militares, herdada dos tempos de exceção, é incompatível com a pluralidade e a transparência exigidas por uma sociedade democrática.

É nesse contexto que a entrevista repercute não apenas como notícia, mas como símbolo de uma crise institucional maior. Quando um coronel da reserva admite, publicamente, que há um caminho político sendo trilhado dentro da PM, o recado é claro: ou a sociedade reage, ou o Estado policial se impõe, lentamente, por dentro da legalidade.

Ao final, o que está em jogo não é apenas a imagem da PM ou a reputação de seus quadros. É a própria alma do Estado democrático de direito. Sturaro, com a serenidade de quem já viu muito, nos convida à reflexão. Que ela não se perca no ruído das manchetes e seja, de fato, o ponto de partida para uma ação cidadã mais vigilante e exigente.