Hélio Liborio
Hélio Liborio

Pitaco

“Xeque no Supremo: Collor joga pelo domicílio, Moraes exige prova para o xeque-mate”

Português

No tabuleiro político-judicial, as peças se movem com destreza quase coreografada. De um lado, os bispos legislativos empunham canetas com mais agilidade que espadas, tentando transformar crimes de multidão em delitos de ocasião — quase uma travessura cívica de domingo à tarde. Do outro, torres togadas mantêm o olhar fixo, mas começam a piscar: o que parecia ser um castigo exemplar começa a ganhar contornos de indulgência retroativa.
A rainha da democracia, sempre em xeque, já não sabe se deve avançar ou recuar. Afinal, não é todo dia que um golpe pode ser rebatizado como surto coletivo. E não é todo sistema penal que sobrevive ao conceito de “arrependimento de massa” com benefícios proporcionais ao número de seguidores. O nome disso pode até não ser anistia, mas o cheiro lembra muito.
Davi Alcolumbre, sempre discreto, agora faz movimentos que não escapam à vista: articula uma lei com cara de nova, mas com efeitos de borracha no passado recente. Para ele, a memória institucional talvez seja flexível, desde que se mantenham os castelos intactos e os aliados fora das masmorras. Não se trata de apagar a história, apenas de editar as legendas.
O Senado veste sua toga improvisada e tenta redesenhar o tabuleiro da Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito. Uma nova peça surge: o “influenciado pela multidão”. Um curioso personagem penal que, mesmo invadindo prédios públicos, quebrando patrimônio e flertando com a ruptura institucional, pode ser visto como alguém que apenas seguiu o fluxo — ou, digamos, a correnteza do WhatsApp.
Ministros do STF assistem a esse espetáculo com a serenidade de quem julga, mas também com a inquietação de quem será cobrado. O ministro Alexandre de Moraes, acostumado a conter ondas de desinformação e ataques às instituições, agora precisa aceitar — ou refutar — que a mão que balança a cadeira também pode ser a mão do arrependido. Xeque ou xeque-mate?
Enquanto isso, os articuladores do projeto juram que a nova pena mais branda não toca nos mandantes, apenas nos executores. Mas há quem diga que, no Brasil, todo indulto começa com a promessa de limite. A dúvida é quando os ventos mudam e o benefício escorre para os que assinaram cheques, fretaram ônibus e alimentaram discursos de ruptura.
A cabeleireira Débora, ícone involuntário do processo, virou símbolo de uma pena pesada que agora querem aliviar. Mas o que fazer com as dezenas de outros réus? Transformar a jurisprudência em compaixão coletiva pode até render manchetes positivas — e votos gratos —, mas compromete o princípio da responsabilização, pedra angular de qualquer regime democrático.
O argumento de que a nova lei se destina apenas aos “arrependidos de ocasião” ignora que muitos só choram depois da sentença. E nesse teatro da política penal, chorar convence mais que provas. Assim, cria-se a figura do “arrependido técnico”: aquele que se emociona na hora certa e colabora o suficiente para ganhar o ingresso do semiaberto.
Para o governo, há uma escolha delicada: embarcar na maré e pagar o preço da concessão, ou manter a rigidez das punições e correr o risco de ser chamado de vingativo. O PT, que no passado foi vítima de arbitrariedades, agora é cobrado por garantismo seletivo. A história, como sempre, se repete — primeiro como tragédia, depois como estratégia eleitoral.
A retórica oficial fala em “revisar a dosimetria” e “ajustar o sistema penal”. Mas nos bastidores, o que se articula é uma versão soft do perdão, sem que se pronuncie a palavra maldita. É como dizer que houve um erro de cálculo — e não de caráter.
Há, por fim, a esperança de que o texto final da lei, se aprovado, seja claro o bastante para distinguir entre quem carregou cartazes e quem carregava intenções golpistas. Mas no Brasil, onde leis nascem ambíguas e interpretações florescem como mato, confiar na letra da norma é como apostar num juiz cego num jogo de cartas marcadas.
E assim seguimos, com a democracia andando na corda bamba entre a justiça que corrige e a política que releva. Afinal, se a multidão erra em conjunto, quem deve ser punido? O indivíduo, o coletivo ou a omissão do Estado? No país do jeitinho, parece que até o golpe ganha segunda chance. Só falta alguém propor que, em vez de cumprir pena, os réus prestem serviços comunitários nas praças onde fizeram live no dia do vandalismo.
No fim, resta ao povo observar esse jogo de sombras e palavras, torcendo para que a democracia não seja, mais uma vez, o prêmio de consolação de um pacto entre espertos. Porque quando a justiça começa a negociar seus próprios princípios, o tabuleiro já não tem rei — apenas peças soltas e um cronômetro marcando o tempo que perdemos tentando fingir que tudo está sob controle.

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