Crise de Autoridade e Espetacularização: O Custo Humano da Segurança Pública no Rio

Uma ação recente do governo do Rio de Janeiro expôs a falência ética e operacional das instituições de controle e a fragilidade da vida, ofuscada pela busca midiática por audiência e pela polarização política.

Eventos recentes de notoriedade nacional, relacionados à segurança pública no Rio de Janeiro, desencadearam mais do que uma resposta operacional do Estado; eles expuseram as profundas fissuras no tecido institucional e social do país. A ação, conduzida sob a égide da necessidade de garantir a segurança, levantou imediatamente questões éticas e de conformidade legal que parecem ter sido eclipsadas por um clamor generalizado por lacração e audiência nas plataformas de comunicação. O foco, que deveria estar no papel do Estado em mitigar o sofrimento e garantir direitos, desviou-se para a corrida por capital político e midiático. É imperativo, portanto, deslocar a lente da mera polarização (A x B) e focar na inação ou na resposta insuficiente de órgãos cruciais como o Ministério Público (MP), os Direitos Humanos e a articulação federativa para lidar com a violência que devasta comunidades e famílias.

1. A Evasão da Responsabilidade Institucional

O questionamento sobre a atuação do Ministério Público e das entidades de Direitos Humanos após ações de alto impacto no Rio de Janeiro não é acidental, mas um sintoma da percepção de omissão ou insuficiência fiscalizadora. O MP, como fiscal da lei e da ordem jurídica, possui o dever constitucional de garantir que a ação policial, mesmo quando necessária, se paute pela legalidade, pela proporcionalidade e pela preservação da vida. Quando a sociedade questiona “Onde está o Ministério Público?”, revela-se uma desconfiança na capacidade do órgão de atuar de forma preventiva e corretiva, assegurando que o poder do Estado seja exercido dentro dos limites éticos e legais, evitando a devastação de famílias e vilas.

O papel dos Direitos Humanos é igualmente posto em xeque. Não se trata de blindar criminosos, mas de zelar pela dignidade humana em todas as circunstâncias, incluindo a atuação policial em comunidades vulneráveis. A fragilidade das estruturas de direitos humanos em intervir prontamente, oferecendo reparação ou minimizando os danos colaterais, sugere que, no calor da crise e da espetacularização, a proteção dos mais vulneráveis é a primeira a ser relativizada. O direito à vida e à integridade dos moradores que se encontram na linha de fogo é frequentemente tratado como um dano colateral aceitável na busca por uma “recompensa” de segurança que nem sempre se concretiza.

A responsabilidade não pode ser desassociada das devidas pastas. A pergunta não é “De quem é a culpa?”, mas sim “O que o Estado vai corroborar para que a sociedade não seja mais ainda prejudicada?”. A atuação do Governo Federal, por sua vez, deve transcender o palco da polarização. A omissão ou a falta de ações afirmativas em parceria com o governo estadual para tratar a questão da segurança como um problema de desenvolvimento social, econômico e cultural, apenas reforça a ideia de que a crise de segurança é um campo de “faroeste” político, onde as bandeiras ideológicas se levantam “sem nenhum crivo de ética, moral e justiça”, e a lei se apresenta tarde demais, quando o mal já foi consumado.

2. A Banalização Midiática e o Círculo Vicioso da Impunidade

A crítica à espetacularização da desgraça alheia nas plataformas de comunicação aponta para um fenômeno mais amplo: a banalização da violência e a busca incessante por audiência. A notícia da tragédia, em vez de gerar reflexão profunda e busca por soluções complexas, é transformada em um produto de consumo rápido, que visa a lacração e o engajamento superficial. A sociedade, exposta a essa narrativa distorcida, corre o risco de naturalizar a violência como um fato inelutável, perdendo a capacidade de se escandalizar com as catástrofes.

Essa banalização se reflete na mediocridade da “representação política” e no “circo” em que, segundo a análise, se transformaram instituições como o Ministério Público e o Supremo Tribunal Federal (STF). A desconfiança popular se instala quando a percepção é de que, no final, resta apenas a impunidade e o desfecho de “tudo vai virar pizza”. O sentimento de que as autoridades fazem um “faz de conta” sustenta a normalização de duas realidades paralelas: a impunidade do tráfico, que persiste, e a impunidade dos agentes de Estado que extrapolam seus limites em operações não fiscalizadas.

O eleitorado, por sua vez, não está isento de responsabilidade nesse ciclo. A crítica sublinha que o povo não pode “fechar os olhos no seu único dia de exercer o seu poder que é o direito do voto” e negociar esse poder por promessas vazias. A transferência de responsabilidade via redes sociais, a busca por lacrações virtuais que só reafirmam o perfil ideológico, desvia o foco do problema estrutural e da escolha consciente. O nível educacional e a preferência de cada decisão tomada, inclusive no voto, determinam a qualidade da representação e a capacidade do Congresso Nacional de evitar o “faz de contas” que leva à catástrofe.

3. Ética e Comando: O Peso da Ordem e da Escolha Individual

A análise toca em um ponto crucial: a cadeia de comando e a ética individual. A crítica reconhece que os policiais “recebem as ordens tanto do estado como de seu comandante para executar as ações”, o que levanta a questão da responsabilidade institucional no planejamento e execução das operações. No entanto, a obediência à ordem não pode desassociar a ação policial de um crivo ético e humanitário. É fundamental discutir como o treinamento e o comando são transmitidos para que a ação do Estado garanta o ir e vir da sociedade sem, ao mesmo tempo, violar os direitos fundamentais.

A reflexão transcende a simples dicotomia “Bem e Mal” — “o bem é bom e o mal é ruim” — para focar na escolha e responsabilidade individual dentro de um sistema falho. O texto sugere que “ninguém pode fugir de suas próprias escolhas”, o que se aplica tanto ao cidadão que vota quanto ao agente público que executa a ordem. A transferência de responsabilidades e a busca por bodes expiatórios através de lacrações nas redes sociais apenas aprofundam a crise ética, pois camuflam a necessidade de reparar e de construir soluções complexas que envolvam todas as pastas governamentais.

É inaceitável que o governador, ou qualquer líder, “decida invadir e pronto”. A possibilidade de que “essa moda pega” é um risco real à democracia e à segurança jurídica. A segurança pública e o valor da vida exigem uma abordagem que integre ações afirmativas, justiça social e rigoroso controle externo. A impunidade do tráfico e a impunidade na resposta do Estado são faces da mesma moeda, sustentadas pela polarização que divide a atenção e impede a convergência de esforços em nome da ética, da moral e da justiça para as famílias devastadas e vilas destruídas.

O episódio no Rio de Janeiro serve como um doloroso espelho da crise de autoridade e da ética pública no Brasil. É um lembrete contundente de que a segurança pública é uma questão intrinsecamente complexa, que demanda a atuação coesa e moralmente fundamentada do Ministério Público, dos Direitos Humanos e dos Três Poderes. A única via para superar o campo de faroeste e o ciclo de impunidade e espetacularização não reside na transferência de culpas, mas sim na assunção das responsabilidades por cada esfera de poder e por cada cidadão no exercício de seu voto e de sua consciência crítica. A luta por um Brasil que se resume no alfabeto todo – e não apenas em duas letras polarizadas – exige que a prioridade seja dada à reparação das vidas e das comunidades, e não à corrida frenética por mais audiência.