
A Festa Literária Internacional de Cachoeira (FLICA), em sua 13ª edição, realizada entre 23 e 26 de outubro de 2025, transcendeu a mera celebração de livros, afirmando-se como um vibrante palco de encontro e reconhecimento da produção literária regional e independente do Norte/Nordeste do Brasil. Sob o inspirador tema “Lê é Massa”, o evento transformou a histórica cidade de Cachoeira, na Bahia, em um caldeirão de trocas culturais. O segundo dia da festa, 24 de outubro, demonstrou essa efervescência ao receber uma “explosão” de autores e autoras que, por meio de suas narrativas, enriqueceram o panorama da formação e da interação literária. O grande vetor desse movimento foi a exposição de obras que trazem consigo o DNA das suas respectivas regiões de origem, destacando a presença e a importância de escritores como Silvio Pereira da Silva, representante de Alagoinhas.
1. A FLICA como Epicentro da Memória e da Nova Escrita
A FLICA não é apenas um festival; é uma experiência de imersão que conjuga a riqueza arquitetônica e a memória histórica de Cachoeira com o pulsar da criação contemporânea. O evento se estabeleceu como um espaço dialético onde o novo e o velho se encontram, gerando um ambiente de profunda reflexão sobre a cultura e a identidade baiana. A convergência de diferentes vozes e perspectivas na festa materializa o conceito de que a literatura é um corpo vivo, em constante agregação de aprendizados e vivências.
Esse papel de mediadora cultural é vital para a literatura brasileira, pois combate o centralismo editorial e acadêmico que historicamente negligencia a produção regional. Ao dar visibilidade a narrativas enraizadas no interior, como as que tratam da comunidade, das pequenas alegrias e das vivências do cotidiano, a FLICA revalida a importância das histórias que a academia ou o mercado mainstream frequentemente subestimam. É nesse solo fértil que o escritor independente encontra a legitimidade e a oportunidade de levar seu “olhar para o mundo”, transformando suas obras em pontes entre o local e o universal.
Essa dinâmica de troca e validação é o que confere à FLICA sua “grandeza”, conforme destacado pelos próprios participantes. Ao se constituir como um local onde “as vivências são construídas e narradas a cada aprendizado”, a festa cumpre a função de integrar a literatura à vida. O contato direto do escritor com o leitor, a possibilidade de vender a própria obra para garantir a continuidade do ciclo criativo (publicar e escrever), reforça o protagonismo do autor na gestão de sua carreira e na difusão de sua arte.
2. Diversidade Temática e a Voz do Escritor Regional

A diversidade dos escritores e das temáticas apresentadas na FLICA 2025 ilustra a complexidade e a profundidade da produção literária baiana. Agnes R, Oliveira, por exemplo, demonstrou um talento para dar voz a uma multiplicidade de personagens que vão do humano ao inanimado – saudade, tempo, amor, goiabeiras e roedores –, tecendo narrativas a partir das memórias maternas e das vivências comunitárias. Essa capacidade de transformar o familiar em protagonista ressalta a importância da literatura como ferramenta de preservação e interpretação da cultura local.

Derivana Santos, pedagoga e poetisa do Território de Identidade do Sisal (Serrinha), trouxe à luz a intersecção entre a escrita, a identidade de mulher negra camponesa e a pedagogia. Seu livro, “Um punhado de poesia daqui de lá”, não apenas celebra as belezas de sua terra, mas também aborda o recorte social urgente do racismo, do preconceito e da identidade de gênero. Essa postura atesta o caráter intrinsecamente político da literatura regional, que se engaja nas lutas por visibilidade e justiça social, utilizando a poesia como instrumento de conscientização e empoderamento.

A união entre a pedagogia e a literatura, defendida por Derivana, reforça o papel da escola como o principal acesso ao livro para muitos estudantes. A iniciativa do coletivo “Ciências Literárias” de dar “espaço, vez e voz” aos estudantes que escrevem é um exemplo prático de como a FLICA inspira ações concretas para democratizar a produção literária. Amilton Vieira de Santana, professor de Matemática de Serra Preta, também converge nessa perspectiva, ao utilizar seus “Ensaios poéticos ou filosóficos” para refletir sobre o sentido da vida, a alegria e, crucialmente, manifestar-se contra injustiças sofridas pelo povo, provando que a literatura é uma ferramenta transdisciplinar e militante.
3. Sílvio Pereira da Silva: A Representação da Multiculturalidade e da Trajetória

A participação de Silvio Pereira da Silva, advogado, músico, radialista, historiador e escritor de Alagoinhas, ilustra a figura do intelectual multifacetado que converge saberes acadêmicos e populares na sua produção. Sua trajetória, marcada por lançamentos em eventos de prestígio como a Flipelô, a Bienal Internacional do Livro de São Paulo e o reconhecimento de sua obra “O Cosmopolita” (indicada ao Prêmio Jabuti de 2022), confere peso e visibilidade à representação de Alagoinhas na FLICA.
Sua mais nova obra, o romance de suspense “A menina que cantava para as flores”, demonstra a versatilidade do autor ao explorar a tensão entre o cotidiano familiar de classe média e o sobrenatural, com conexões históricas e espirituais na Bahia. O enredo, que se desenrola em Itapuã e envolve forças estrangeiras e mistérios ancestrais, utiliza a multiculturalidade como pano de fundo para desvendar segredos familiares, reforçando a Bahia como um espaço rico em complexidade social e misticismo.


A primeira obra de Silvio, “O Cosmopolita”, é um exemplo notável de romance regionalista com traços realistas e cientificistas. O livro não só retrata a vida interiorana, a história e a linguagem de Alagoinhas, mas também celebra a diversidade cultural, social e racial do baiano, sugerindo que a felicidade reside na capacidade de encarar essa diversidade com prazer. O destaque nacional e internacional alcançado por esta obra (com vendas na Amazon e a honraria de ser presenteado ao Presidente de Portugal) sublinha a capacidade do talento regional de transcender as fronteiras geográficas quando apoiado por plataformas como a FLICA.
O sucesso da 13ª FLICA em Cachoeira reitera o papel insubstituível das festas literárias como catalisadores da produção autoral. Ao proporcionar um palco robusto para a diversidade de vozes, o evento assegura que a literatura não se restrinja aos cânones hegemônicos, mas floresça nas mãos de pedagogos poetas, matemáticos filósofos e advogados historiadores. A FLICA, ao celebrar a escrita que emerge do Sisal, de Alagoinhas, de Serra Preta e de Cachoeira, garante que a riqueza da Bahia seja contada por quem a vive, preservando a memória e projetando novos horizontes para a literatura nacional, onde cada história local se torna, inequivocamente, uma história universal.

