
A FLICA é vital para a literatura baiana, mas a celebração do escritor independente mascara o desafio da sustentabilidade, que exige dos autores a autogestão da venda de livros para manterem viva a própria produção cultural.
A Festa Literária Internacional de Cachoeira (FLICA), celebrada em sua 13ª edição, representa um triunfo incontestável na democratização e visibilidade da literatura produzida fora dos grandes centros editoriais do País. No entanto, para além da atmosfera de festa e da retórica de exaltação, a realidade apresentada pelos próprios autores revela uma ambivalência estrutural: a grandiosidade do evento, ao mesmo tempo que acolhe, expõe a profunda fragilidade do escritor regional e independente no ecossistema cultural brasileiro. O foco no talento de autores como Agnes R. Oliveira, Derivana Santos e Silvio Pereira da Silva deve vir acompanhado de uma análise crítica sobre as condições que os obrigam a ser não apenas criadores de arte, mas também, inevitavelmente, empreendedores e vendedores de sua própria produção. A FLICA, nesse sentido, é um farol que ilumina tanto o sucesso quanto o dilema da autonomia autoral.
1. O Paradoxo da Autonomia: Criar e Vender para Sobreviver
O escritor independente, ao levar suas obras para a FLICA, encarna um paradoxo: ele alcança a liberdade temática e formal, mas em troca, assume integralmente o ônus da logística e da comercialização. Agnes R. Oliveira sintetiza esse dilema ao afirmar: “Eu levo comigo minhas obras, por que é preciso vender para que continue publicando, escrevendo.” Essa frase, embora prática, é um sintoma da falha de sustentação do mercado editorial tradicional em absorver e distribuir a vasta e rica produção regional.
O fato de um autor, mesmo talentoso e com obras reconhecidas (como as de Silvio Pereira), precisar gerenciar a venda direta em eventos literários sublinha a ausência de um mecanismo de distribuição robusto e equitativo. A FLICA oferece o palco, mas não elimina a necessidade de subsistência do artista. A crítica reside, portanto, não no esforço do autor, mas na incapacidade do sistema cultural (incluindo o Estado e as grandes editoras) de garantir que a obra, uma vez reconhecida em sua relevância (como os romances regionalistas e os ensaios poéticos sobre injustiça), tenha um canal estável de circulação e remuneração digna, permitindo que o escritor se dedique primariamente à criação.
A celebração da FLICA corre o risco de se tornar uma panaceia simbólica se o sucesso do evento não se traduzir em políticas públicas ou incentivos de mercado que mitiguem a autogestão financeira imposta ao autor. O “coração cheio de alegria” de Derivana Santos por estar no evento é genuíno, mas essa alegria coexiste com a responsabilidade de “representar o território do sisal” e, ao mesmo tempo, garantir a venda de seu “punhado de poesia”. A crítica exige que a FLICA inspire a criação de pontes perenes que liguem o autor independente do interior, reconhecido em Cachoeira, à prateleira das grandes livrarias e aos editais de compra governamentais que valorizem a diversidade regional.
2. A Literatura como Transtorno Social e Político
A riqueza da FLICA reside na sua capacidade de acolher obras que são inerentemente transgressoras do status quo, mas esse acolhimento deve ser ativamente defendido. Os livros de Derivana Santos, ao fazerem o recorte social sobre racismo, preconceito e identidade de gênero, e os versos de Amilton Vieira de Santana, ao manifestarem-se contra injustiças sofridas pelo povo, provam que a literatura regional é, em essência, uma literatura política e de denúncia.
No entanto, há uma tensão inerente: o sucesso comercial ou o reconhecimento institucional (como a indicação ao Jabuti) frequentemente favorecem obras que, embora ricas, podem ter um potencial de “transtorno” social menos agudo ou que se enquadram em gêneros mais consumíveis, como o romance de suspense (exemplificado pela obra de Silvio Pereira). O risco é que o sistema passe a valorizar seletivamente a diversidade que é palatável, enquanto as vozes que trazem a crítica social mais radical (como a de Derivana, que liga a identidade negra camponesa à pedagogia) recebam visibilidade momentânea, mas enfrentem maior dificuldade na perenidade editorial.
A FLICA e o meio acadêmico, representados pela Pedagogia e pelo coletivo “Ciências Literárias”, têm a obrigação ética de promover ativamente a literatura que confronta. A defesa de que “a literatura perpassa em sala de aula” e de que é na escola que o acesso ao livro chega, transforma o escritor regional em um agente de conscientização e letramento crítico. A festa deve ser mais do que uma vitrine de títulos; deve ser um fórum permanente que utiliza o prestígio de autores consagrados (como o próprio Silvio Pereira) para ampliar a voz e a distribuição dos autores iniciantes cujas obras possuem a densidade do engajamento social e político.
3. O Intelectual Multifacetado e a Cobrança por Multiplicidade
A figura do escritor na FLICA é a de um intelectual multifacetado: ele é advogado, historiador, músico, professor de matemática, pedagogo. Essa multiplicidade de saberes, que enriquece imensamente a escrita, é também um reflexo da necessidade de pluriatividade para sobreviver. O escritor regional, muitas vezes, não pode se dar ao luxo de ser apenas escritor. Ele precisa ter uma segunda ou terceira profissão para garantir sua subsistência, dedicando o tempo livre à atividade literária.
A crítica aqui se direciona à infraestrutura que impede a profissionalização plena do escritor. Embora a diversidade de formações (Direito, História, Matemática, Pedagogia) gere obras ricas em transversalidade e cientificismo, como “O Cosmopolita”, essa transversalidade é, por vezes, uma imposição econômica, e não uma mera escolha estética. A sociedade e o mercado editorial celebram o resultado dessa riqueza, mas ignoram a labuta e a precariedade que a geraram.
A FLICA, ao dar destaque à trajetória de Silvio Pereira – com sua Bienal, Jabuti, Flipelô, e a honraria de presentear o Presidente de Portugal –, demonstra a capacidade de um autor regional de alcançar o Olimpo literário. No entanto, o desafio é fazer com que essa visibilidade se estenda de forma sustentável para todos os escritores do interior baiano, garantindo que a qualidade da escrita seja o único critério de sucesso, e não a capacidade do autor de ser seu próprio agente, vendedor, distribuidor e profissional liberal em outras áreas. A festa deve, portanto, ser um motor de mudança para que a vocação literária seja plenamente sustentável na Bahia.
O espetáculo da FLICA 2025 consagra a Bahia como um celeiro de talentos literários inesgotável, demonstrando que o “lê é massa” é, na verdade, um imperativo cultural. O evento é um marco fundamental que garante a preservação da memória, a manifestação da crítica social e a celebração da diversidade de vozes. A tarefa que resta, para além do brilho efêmero da festa, é converter o reconhecimento simbólico em sustentabilidade material. É preciso que o sistema cultural garanta que o escritor regional, já legitimado pelo palco de Cachoeira e pela recepção do público, possa focar integralmente na criação, livre da incessante jornada de autogestão. O futuro da literatura baiana de excelência exige que o “novo e o velho” se harmonizem, não apenas na narrativa, mas também nas políticas de valorização do criador.
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