
O espetáculo da segurança pública no Rio de Janeiro revela uma crise ética onde a tragédia humana é instrumentalizada pela polarização, transformando a fiscalização institucional em “circo” e o debate em mera “lacração” midiática.
A recente ação governamental no Rio de Janeiro, embora envolva a legítima necessidade de restaurar a ordem e a segurança, desnudou uma crise mais profunda e insidiosa: a devoração da ética pela polarização política e midiática. O foco da discussão pública raramente se deteve na complexidade da segurança ou na necessidade de reparação para as famílias afetadas. Em vez disso, o evento foi imediatamente sequestrado pelo discurso dicotômico, transformando a desgraça alheia em combustível para a “corrida maluca por audiência”. A indignação seletiva e a urgência em “lacrar” nas redes sociais tornaram-se mais importantes do que a atuação coesa do Estado. Não se trata, pois, apenas de criticar a ação em si, mas de denunciar o cinismo que permite a espetacularização do sofrimento e a fragilização intencional dos mecanismos de controle, como o Ministério Público e os Direitos Humanos.
1. A Instrumentalização da Violência e a Falência Ética da Representação
A crítica à representação política atual como sendo “medíocre” e ao comportamento institucional como um “faz de conta” é um reflexo direto da instrumentalização da violência. A tragédia de segurança pública, que deveria ser um ponto de convergência para o consenso em torno de soluções complexas, é utilizada como um capital de guerra na disputa ideológica. O governador, ao agir de forma isolada e sem a devida transparência e fiscalização prévia (o temor de que “decidiu invadir e pronto”), adota uma postura de bravata que, embora possa gerar aplausos imediatos na arena polarizada, ignora a necessidade de uma estratégia de longo prazo que inclua ações afirmativas e parceria federativa.
O resultado dessa instrumentalização é a corrosão da confiança na Justiça. Quando o Ministério Público, os Direitos Humanos e o próprio STF são percebidos como participantes de um “circo”, cujo desfecho mais provável é a “pizza”, a credibilidade do Estado democrático de direito é irremediavelmente abalada. A banalização da impunidade do tráfico, ao lado da impunidade na resposta estatal, cria um ciclo vicioso de desumanização. Essa falência ética se manifesta na inação do Congresso Nacional, que se limita a “se escandalizar quando as catástrofes acontecem”, mas falha em legislar e fiscalizar de forma preventiva e responsável.
A coluna critica o cinismo da polarização, que transforma a complexidade do Brasil, um país do “alfabeto todo”, em um duelo de apenas “duas letras”. Essa simplificação retórica desonesta impede que o debate se aprofunde em questões estruturais como o financiamento do crime, as raízes socioeconômicas da violência e a formação ética e psicológica dos agentes de segurança. A ética exige que o bem e o mal sejam reconhecidos em sua distinção (“o bem é bom e o mal é ruim”), mas a polarização os distorce em meras ferramentas de autoafirmação e transferência de responsabilidade.
2. O Voto, a Escolha e a Transferência de Culpa
O texto levanta uma reflexão incômoda sobre a responsabilidade individual e coletiva na manutenção desse cenário. A afirmação de que “ninguém pode fugir de suas próprias escolhas” atinge tanto o político que decide pela ação não fiscalizada quanto o cidadão que participa da “corrida por audiência” e, crucialmente, o eleitor. A crítica à negociação do voto por promessas vazias ou “qualquer quantia” aponta para uma falha cívica que retroalimenta a mediocridade política.
O nível educacional, o gosto e as preferências individuais não se manifestam apenas nas redes sociais, mas definem a qualidade do mandato que se elege. O ato de transferir responsabilidades por meio de lacrações nas redes sociais é visto como um ato de covardia intelectual e moral. Em vez de engajamento construtivo e cobrança rigorosa das instituições, o espaço virtual se torna um palco para o perfilamento ideológico, onde o “gosto” pela opinião polarizada prevalece sobre o dever de análise crítica.
A discussão sobre o comportamento dos policiais é um ponto sensível dessa cadeia de escolhas. Embora recebam ordens, a ética do agente público deve ser o balizador final. O Estado tem o dever de garantir que a ordem transmitida e a sua execução sejam plenamente legais. Quando a responsabilidade é diluída na cadeia de comando e a fiscalização (MP e Direitos Humanos) se mostra ineficaz, a falha se torna sistêmica. A única forma de honrar a importância da vida e da segurança pública é exigir que as ordens sejam éticas e que sua execução não contribua para a devastação de famílias e a destruição de comunidades.
3. O Imperativo da Reparação e a Crítica à Ação Tardia da Lei
O texto ressalta a desproporção temporal da lei: “o mal já foi feito, famílias devastadas, vilas e cidades destruídas, e a velha promessa sobre a cédula da recompensa”. Esta é a crítica mais ácida à funcionalidade do Estado no contexto de crise. A lei e a justiça só se apresentam em um momento de reparação tardia (ou de promessa de reparação), falhando em sua função preventiva e protetora.
O foco deve ser transferido da busca por culpados (“De quem é a culpa?”) para a ação corretiva e reparadora (“O que o estado vai corroborar para que a sociedade não seja mais ainda prejudicada”). Isso implica que as “pastas” governamentais (Segurança, Assistência Social, Habitação, Educação) não podem se desassociar da crise. A segurança pública não é uma ilha; é um reflexo das políticas sociais e econômicas. O fracasso na gestão da crise é o fracasso na articulação intersetorial.
A coluna clama por uma renovação do alfabeto político. A banalização da tragédia, a omissão das autoridades e a hipocrisia da polarização são a negação da possibilidade de um futuro justo. A impunidade do tráfico não pode ser a justificativa para a impunidade do Estado. O que a sociedade assiste no Rio de Janeiro é a negação do valor da vida em nome de uma lei do faroeste que, embora venha mascarada de ordem, apenas perpetua a violência e a desgraça
O episódio no Rio de Janeiro não é uma mera notícia, mas um diagnóstico da exaustão ética e política do Brasil, onde a tragédia social serve de cenário para o teatro da polarização. Para que a vida, a segurança pública e a justiça recuperem a centralidade, é urgente que as instituições de controle (MP e Direitos Humanos) deixem de ser um “circo” e assumam o rigoroso dever de fiscalizar o poder estatal em todos os seus níveis. A superação da crise exige que o cidadão e seus representantes abandonem a retórica fácil da “lacração” e se unam no imperativo de reparar as comunidades e reconstruir o tecido social, assegurando que o bem e a moralidade sejam a bússola inegociável de toda e qualquer ação pública.
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