No último dia 3 de agosto, um evento de profunda relevância social e cultural marcou a cidade de Feira de Santana, na Bahia. No auditório do Centro Integrado de Educação Municipal Professor Joselito Falcão de Amorim, foi lançado o livro “Mulheres Negras; Olhares, vozes e mãos”, uma antologia que celebra a escrita de 64 mulheres negras. O encontro não foi apenas uma cerimônia de lançamento, mas uma verdadeira celebração de narrativas que resgatam memórias, fortalecem identidades e, acima de tudo, afirmam a resistência como uma palavra de ordem. O evento representou um ato coletivo de protagonismo, onde a literatura se tornou uma ferramenta de empoderamento e um espaço de pertencimento para vozes que historicamente foram silenciadas.

A Continuidade de um Legado Literário e a Potência das Mãos
O lançamento da antologia não pode ser visto como um fato isolado, mas sim como a continuidade de um legado literário negro e feminino que pavimentou o caminho para as 64 autoras. A obra se insere em uma rica tradição, cujos alicerces foram construídos por pioneiras como Carolina Maria de Jesus (1914–1977), uma escritora autodidata que, com a obra “Quarto de Despejo”, denunciou ao mundo as mazelas sociais a partir de uma perspectiva crua e profundamente humana. A menção a Carolina é um reconhecimento de sua influência incontornável, uma voz que se tornou um marco para gerações de escritoras. Da mesma forma, a antologia se conecta à obra de Conceição Evaristo, que popularizou o conceito de “escrevivência”, e a outras figuras essenciais como Esmeralda Ribeiro, uma das idealizadoras dos “Cadernos Negros”, e Fabíola Aquino, Denise Carrascosa, Jovina Souza e Alessandra Barbosa, que através de suas pesquisas e poesias continuam a afirmar a presença negra na academia e nas ruas.
A antologia se estabelece, portanto, como um “celeiro de escritas e saberes”, que resgata e ressignifica um passado de lutas. Uma das grandes marcas da obra, é sua vasta diversidade, que abarca diferentes idades, geografias e manifestações religiosas, ampliando o alcance e a representatividade de suas narrativas, estas são a materialização de uma história que se torna presente, como o “olhar visionário” mencionado pela organizadora Delma Pereira. Os relatos de “mainha, ‘você vai pegar aquele ônibus’” e “eu conseguir passar no vestibular” não são apenas lembranças, mas testemunhos de caminhos que foram reescritos. O livro, por meio das palavras, traduz uma legitimidade de ser, de querer e de resistir. Ele é uma reafirmação de que o direito à palavra, à história e à identidade é um campo de batalha conquistado com a escrita.

A cerimônia de lançamento, repleta de emoção e simbolismo, reforçou a importância desse legado e a responsabilidade das novas gerações. Alessandra Alves, professora da UNEB e poeta, expressou a dor de não ter encontrado a literatura de Conceição Evaristo e Mirian Alves durante sua formação escolar, e por isso, vê neste trabalho uma obrigação de “continuar motivando muitas outras mulheres”. Essa declaração não é apenas uma crítica à ausência histórica de representatividade, mas um chamado à ação para que essa lacuna seja preenchida. A antologia, neste sentido, é mais do que um livro; é um manifesto de que as histórias e as vozes das mulheres negras têm o poder de moldar o futuro e de garantir que o legado dos antepassados não seja esquecido.

A Escrita como Ato de Desabrochar e Empoderamento
O livro “Mulheres Negras; Olhares, vozes e mãos” se configura como um espaço para o “desabrochar” de sentimentos e vivências. Ronilda Gomes, uma das autoras, descreveu o processo como a possibilidade de “colocar para fora as emoções, sentimentos, nossas vivências, nosso desabafar”. Para ela, que se sentiu “tolida” por muito tempo, a antologia abriu uma oportunidade e instigou uma nova jornada de escrita, que se manifesta em diferentes áreas da sua vida. Essa experiência ressalta o poder libertador da escrita, que permite às mulheres negras expressarem suas verdades e construírem sua própria narrativa, sem as amarras impostas pela estrutura social.

As escritas da antologia se tornam um instrumento de empoderamento e de valorização da identidade. Débora Maria, por exemplo, trouxe a necessidade de se amar, de se aceitar, defendendo o “black” como símbolo de fortalecimento. Ela enfatizou a importância de “um trabalho de empoderamento de nossas infâncias negras, que é necessário para crescer fortalecida”. Jaiane Santos Lima, por sua vez, demonstrou como a valorização da estética do cabelo, através do ofício de trancista, é uma forma de “enxergar além do óbvio” e de descobrir a força através do amor-próprio. A escrita, neste contexto, é um ato de autodescoberta e de autoafirmação, que ressignifica o lugar da mulher negra na sociedade e a liberta das “bolhas” de toda uma vida, onde a palavra de ordem sempre foi “não pode” ou “este não é o seu lugar”.


A antologia, por fim, é um espaço onde as autoras compartilham suas travessias e enfrentam os estigmas. As narrativas de “racismo, machismo, lesbofobia e violência” são abordadas não a partir do lugar da dor, mas do “lugar de denúncia e protagonismo”, como ressaltou uma das participantes. A obra se torna uma plataforma para que as mulheres negras falem sobre si, a partir de si, e reivindiquem uma narrativa que não lhes foi permitida. A voz de Lívia Passos, com a mensagem de que “não desistir é um princípio de inteligência internalizado”, serve como um chamado à persistência, à resiliência e à ocupação de espaços historicamente negados, reforçando o poder da escrita como um caminho de emancipação.

O Aquilombamento da Escrita e a Força da Coletividade
O evento em Feira de Santana foi mais do que um lançamento de livro; foi um ato de “aquilombamento”. Como Maria Rita destacou, a antologia representa “o aquilombamento, no trazer vozes femininas, vozes que estão empoderando, que estão marcando sua trajetória”. O termo, historicamente ligado aos refúgios de resistência dos escravizados, ganha uma nova conotação na contemporaneidade, representando o encontro e a solidariedade de mulheres negras que se unem para resistir, se fortalecer e construir um futuro juntas. Essa força da coletividade se manifestou no palco, onde mulheres de diferentes origens e profissões – professoras, poetas, feirantes, cantoras, pesquisadoras – compartilharam o mesmo espaço de protagonismo.

Anália Santana, que se identifica como “da roça de Irará”, e Edineide Ribeiro, “a moça da feira de Santa’Ana”, trouxeram para a obra as suas origens, mostrando que a escrita transcende a academia e se enraíza nas vivências populares. Para Anália, a antologia a fez “repensar esse marco” e não estranhar suas raízes, reafirmando que seu “marco fundador, potência” vem do campo. Edineide expressou o orgulho de “representar esta multicultura do que representa a feira e seus participantes”, ocupando um espaço negado pela estrutura dominante. Essas narrativas mostram que a união de vozes de diferentes origens e classes sociais é o que torna o “aquilombamento” tão potente, construindo uma “rede de sociabilidades e solidariedade”, como ressaltou Anália.


Gisele Belmon, ao falar sobre o colorismo e sua trajetória de se descobrir como mulher negra, resumiu a essência do coletivo: “nos construímos no coletivo, mostrando o quanto é importante o nosso coletivo, no ser mulher e mulher preta”. Ela reafirma que a educação e a resistência vêm de diversos espaços formativos, como os movimentos sociais e a capoeira, e que a luta de uma é a luta de todas. A antologia, portanto, não é apenas a soma das 64 vozes, mas a multiplicação de sua força, construindo uma base para que “outras Marias” se inspirem, se escrevam e se percebam. A escritora Geovania de Jesus, com sua narrativa sobre as “Marias”, Maria Firmina e a ancestralidade, contribui para essa construção, mostrando a importância da história e da memória para as novas gerações. O evento em Feira de Santana, por meio da escrita, narrou mais um capítulo na história, agora no lugar de direito e fato das mulheres negras.


O lançamento da antologia “Mulheres Negras; Olhares, vozes e mãos” em Feira de Santana representou um marco cultural e social, reafirmando a escrita como um poderoso instrumento de resistência e empoderamento. A obra, que ecoa a “escrevivência” de Conceição Evaristo e o legado de Carolina Maria de Jesus, oferece uma plataforma para que 64 mulheres negras resgatem suas memórias, celebrem suas identidades e ocupem um espaço que por tanto tempo lhes foi negado. O evento foi uma celebração da potência do coletivo de mulheres negras, nas diversas atuações e áreas representadas no processo de reescrever a história e mostrar que, apesar dos “silêncios que desumanizam”, a voz, a resiliência e a ancestralidade negra se fazem presentes, fortes e necessárias para as gerações que virão.